segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Falar com o dono não adianta, o sistema é quem decide


MARCOS DANTAS - Na vila chamada Banco Central, lugarejo onde nasci, encravado entre duas serras, lá no Sul da Bahia, município de Ilhéus, entre tantas figuras pitorescas, conheci com meus olhos de criança o seu Valentim; (será que a brabeza dele tinha a ver com o nome?) fato é que o sujeito era um baiano bruto, rústico e muito, mas muito sistemático.

Para se ter idéia, seu Valentim, que raramente comprava uma camisa nova, quando isto acontecia, ainda na loja ele arrancava logo os botões, seu sistema era usar a dita-cuja aberta. Certa feita, ele entrou com esta desabotoada no ônibus e o motorista lhe chamou atenção, ao que ele rispidamente respondeu “eu deço mas não abutuio”.

Historicamente o pioneiro sistema a ser implementado por aqui foi o sócio-político-econômico escravocrata. Relação esta entre senhor e escravo que serviu de alicerce que estruturou o voraz estado brasileiro. E nessa moldura vivemos escravos do sistema que não é o do seu Valentim que a única vez que pisou em um banco queria falar com o dono do mesmo. “Se não posso falar com o dono intão não vou botar meu dinheiro aqui”.

Os tempos modernos além de franquear a tecnologia também escraviza com seu implacável e feroz sistema. Você já é o ‘ultimo do derradeiro’ na fila e quando chega a sua vez, ouve: o sistema caiu, o sistema está lento, o sistema o sistema não libera, o sistema acusa que o senhor(a) deve a deus e ao mundo, o sistema está fora do ar, o sistema só libera até esse limite, aqui pelo sistema o senhor(a) não é o senhor(a)... 

Naquele tempo o freguês ia na ‘venda’ comprar alguma coisa e se o nome tivesse ‘sujo’ no livro, então era informado pelo dono (sistema) da venda que havia atraso de pagamento e que por isso não seria possível atende-lo naquele momento... a situação poderia ser logo revertida caso o devedor apresentasse uma boa justificativa acompanhada da promessa de pagamento o quanto antes.

Depois do sistema dominar todos e tudo o cidadão(ã) que paga caro por tudo, inclusive leva uma pesadíssima e insuportável carga tributária é obrigado(a) abaixar a cabeça, ainda que revoltado, mas como bom escravo(a) nada dizer, nada reclamar nem com ‘o bispo’, como se dizia...

O sistema é o cruel senhor do engenho, o capitão da senzala. Com uma mão lhe oferece benesses quando quer, e com a outra lhe chicoteia até a alma, sem compaixão, não há direitos humanos que incrimine, policie os atos do sistema contra cada ser humano, em especial os menos favorecidos, desprovidos de meios para se defender ou driblar os golpes certeiros do algoz.

Quarenta anos depois entendo o que se poderia chamar hoje de contra-sistema do seu Valentim, como a vislumbrar um futuro ainda mais sistematizado, se defendia da forma que melhor lhe convinha. Contra o sistema só bilhões de valentins, brutos, rústicos e sistemáticos.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Quando crescer, quero ser velho...



- Menino vai estudar pra ser alguém na vida!
- Sabe de uma coisa, quando eu crescer eu quero mesmo é ser velho, igual o vovô...

MARCOS DANTAS - O mundo não era tão moderno quando já se ouvia a celebre declaração dos mais velhos exortando os de tenra idade executar seus conselhos para assim se tornarem ‘alguém na vida’.

Alguém na vida já o é desde a concepção que, ao passar dos dias os genitores já podem se comunicar com o pré-rebento que responde com os famosos ‘chutes’ na barriga.

Certo é que poucos pensam que independente de ser ou não ‘alguém na vida’, ficar velho é uma lei natural de todo ser. Com a modernidade chegou também para alguns uma melhor qualidade de vida, o que proporciona o alongamento de dias e os velhos passaram ser considerados idosos.

Mas para aquele menino, o velho avô era velho mesmo, sua barba e cabelos brancos diziam que ele era velho, sábio, muita experiência, isto era demonstrado nas palavras, nos gestos, nas brincadeiras, no olhar e nas respostas sobre cada coisa que o menino queria saber.

O velho sabe que não precisa ir à farmácia comprar o remédio, seu pai, seu avô lhe ensinara que bem ali na mata, no pasto, no quintal da casa tem aquela folha, ou raiz para fazer o chá. O velho aprendeu que uma boa amizade não faz ou se mantém via Web, facebook, SMS, smartphone, câmeras digitas (as fotos de lambe-lambe formavam os álbuns), notebook, laptops, tablets, iPhone, iPad, os velhos orkut/MSN... a amizade não precisava de upload, download nem de links, era o bate-papo ali no pé do ouvido com o compadre.

TI (tecnologia da informação) nem pensar! Bastava um pulinho na esquina e já se sabia de tudo da vila, nada de globalização, política econômica, política interna e externa, câmbio, trânsito, bolsa que sobe que desce, o mundo não interessava, já se tinha assunto demais para ser falado. Ficção só mesmo nas conversas em noites de lua cheia, todos sentados à porta da casa, as crianças brincando no terreiro, enquanto os velhos falavam de lobisomem, mula-sem-cabeça, caipora, e tantas outras figuras do repertório imaginário dos velhos idosos.

As frutas e legumes eram cultivados sem agrotóxico e bastava ir à roça que as sacolas voltavam, apinhadas, dos mais variados gêneros que garantiam o cozido de fim de semana que reunia toda família e os amigos mais chegados. Estresse era algo que não se falava e nem se sentia, todos riam de si, das conversas corriqueiras, das lembranças vividas e contadas pelos ‘causos’ floreados até repetidos mas que atraíam a atenção e faziam sucesso bem mais que os programas rebolantes da TV, das telenovelas ‘super-sensualizadas’ e do indecoroso, anti-família, e malfadado Big Brother.

Compartilhar os bons momentos, estar juntos na alegria, na doença e na tristeza, curtir a paisagem bucólica do campo e o olhar meio que insinuante da moça na janela era o que se arquivava nas memórias que o tempo não deleta, e tudo era atualizado quando se navegava entre nuvens formatadas virtualmente pelos sonhos.

- E as músicas do seu tempo vovô?
- Ah, as músicas eram verdadeiras poesias, falavam das flores, do beijo na mão, da casinha de sapê, do vestido azul, do azul piscina, do barquinho e do mar, do rio e das florestas, da injustiça, da pobreza, cantava contra a guerra, falava do amor. Composta e cantada por encanto da mulher (não era chamada de frutas), nunca as chamava de cachorras, preparadas, novinhas e não se ouvia palavrão...
- Palavrão como Otorrinolaringologista?
- Não, palavras que quando os meninos falavam, suas bocas eram lavadas com sabão.
- Então vovô, quando eu crescer, eu quero ser velho...